Crónica da Nova Espécie

O Nascimento

O ano é o de 1945. Um ano terrível para o mundo, contudo a estirpe Hitleriana cessa a sua existência, pelo menos sob forma física. As atrocidades e os horrores ainda pairam no ar turbulento da Baviera. Perdida nos sopés das montanhas, estava uma casa vitoriana velha na qual os compartimentos competiam entre si, o seu nível de bafio. Foi num deles, a biblioteca, que num dia tempestivo de trovões martelantes e chuvas estilhaçando nas vidraças, o fenómeno se deu. A luz irrompia raiada pela escuridão abafada da biblioteca, projectava a sombra dos caixilhos das janelas no chão em carpete de onde se erguia uma mesa de pernas torneadas e uma estante de 3 pisos grotesca e pesada pelo seu carvalho envelhecido. Um passado negro envolvia a mansão, ainda envolve. Da terra em seu redor brotava um fogus factus que se misturava em vórtices ondulantes no vento agitado. Era a época de acasalamento dos bichos do papel e ao fim de 3 castos anos um bichito macho avistou fulgorosamente uma fêmea passeando penosa sobre a capa empoeirada dum livro de Nietchze. Aproximou-se dela, cortejou-a embora não haja de todo competição, são os únicos seres vivos ali. (Alterando o tempo da oração) A tempestade lá fora intensifica-se como se a ira da natureza estivesse prestes a testemunhar a sua mais negra criação. As nuvens carregadíssimas de fúria embatem ainda com mais força umas nas outras, esborrachando-se em tremores estrondosos. Os bustos e os biblots da sala de leitura tremem sobre as superfícies quase perpetuas dos móveis. A fêmea cheira o macho e sente o cio, que magnifica oportunidade para contribuir para a preservação da sua espécie. Encostado de pé ao livro de Nietchze, agora um palco nupcial, encontrava-se um exemplar completíssimo, um “Postulado para o Teórico sobre a Teoria”. O bicho aproxima-se, ela não lhe dificulta a vida. A tempestade rebenta em raiva… Bem lá no alto da coluna central da estante estava uma raridade cujo anterior utilizador não teve o cuidado de a guardar convenientemente. Por ter deixado este livro deitado sobre os outros alinhados na vertical esqueceu-o um pouco saído e em risco de tombar. O vento esbofeteia a mansão num violento abanão fazendo cair esse fantástico “Volume da Oração Erudita” da prateleira mais alta. O Postulado também se desequilibra e volta-se tombando sobre o casal roedor de papel. O macho põe as patas por cima da carapaça estaladiça da fêmea, o Volume precipita-se sobre eles esvoaçando as suas sábias páginas num remexer do mofo do ar. A inclinação do Postulado é agora evidente, dentro de dois segundos terá esmagado o casal procriador. O Volume acelera a sua queda prevendo esmurrar-se no casal no mesmo exacto momento do Postulado. Muito em breve o exemplar de Nietzche será uma campa, ou talvez não... Num golpe severo, o vento consegue quebrar a vidraça frágil decompondo-a em amorfos recortes de vidro. Traz a chuva consigo, molhando o chão e os cortinados, mas há uma gota solitária e arrojada que se solta das suas irmãs e se lança num braço de vento num voo em direcção aos bichos. O Livro, o Volume e o Postulado encontram-se agora a um centímetro do casal e eis se não quando o macho investe em desfloração na fêmea. No momento a seguir os três exemplares de sabedoria tocam-se desintegrando o casal ao mesmo tempo em que a gota do fluido vital se estatela contra os dois bichos envolvendo-os, como que num abençoar do acto de vida, o fenómeno a decorrer. E é ainda, no micro segundo imediatamente seguinte que as nuvens rompem em loucura num relâmpago tenebroso que atinge toda a cena fenomenal dos bichos, os exemplares e a gota de água. Ouviu-se um “PUNFKTS” quando o raio os explodiu, uma aura esbranquiçada solta-se e os lobos barbentos do monte uivaram sem saber porquê….uma estranha receita deu fruto…

Nove meses passaram. Neste tempo e naquele local onde jaziam as duas criaturas e os livros, floresceu um fungo, fungo este que formou um bolor micro activo, depois um muco proteico, um soro vitamínico, mais tarde uma seiva repleta de nutrientes e por fim aquele concentrado biológico tinha criado uma forma básica de placenta fazendo nascer do seu seio uma criatura bizarra. Cinquenta anos passaram e durante estes, a criatura alimentou-se de palavras e de ideias que comia dos livros, adquiriu uma forma humanizada de tanto conviver com os bustos sérios nos cantos da biblioteca, cresceu nesse ambiente sagrado. Deambulava taciturna na procura do sentido da sua vida. Na altura em que se sentiu confortavelmente parecido com uma pessoa, saiu à rua e aventurou-se à descoberta do que lhe aparecesse à frente.
A verdadeira história passa-se nos doze anos seguintes mas deixarei isso para outro capítulo…
Posso-vos só adiantar que actualmente a criatura sente-se tão só na sua mansidão pacata que sente uma necessidade vital de tratar tudo o que o rodeia por “os meus amigos”, amigos estes que a olham em muitas formas excepto na forma de um amigo.

1 comentário:

Inoi Truão disse...

Absolutamente genial. Um futuro bestseller! Por esta altura os leitores deverão estar bastante confusos, mas garanto-vos que um aluno do terceiro ano (2007/2008) da FAUP saberá contextualizar isto...